Enquanto declarações e ações racistas acontecem no futebol brasileiro
e europeu, bisnetos de Miguel do Carmo tentam manter viva memória do
primeiro negro da história da bola no Brasil
Campinas (SP)
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Os primeiros negros no futebol brasileiro |
Quase 111 anos depois, dois garotos, de 18 e 17 anos,
tentam dar continuidade à trajetória de quem é apontado como o primeiro
negro a atuar em um time de futebol no Brasil. Eles são Gabriel e
Lucas, bisnetos de Miguel do Carmo, um dos fundadores da Ponte Preta –
em 11 de agosto de 1900, época em que o futebol nos clubes e federações
era exclusividade de quem tinha posses e, principalmente, era branco.
No
limite da idade para entrar na carreira profissional, a dupla treina
nos campos do Jardim Garcia (em escolinha que leva o nome do avô,
Geraldo do Carmo, filho de Miguel e zagueiro do Guarani, nos anos 50) e
do Taquaral, bairros de Campinas. Gabriel e Lucas até tentaram
participar de peneira da Ponte, mas com a concorrência de outros 3 mil
meninos nem chegaram a ir a campo.
– Uma porta de entrada pode ser
o futebol universitário dos EUA. Minha ideia é estudar lá e tentar. Nos
EUA é comum a carreira começar com 18 – diz o volante Lucas.
Sua
mãe, a jornalista Raquel do Carmo, acompanha a luta do filho e do
sobrinho, enquanto busca resgatar a memória do avô, que ela nem chegou a
conhecer – Miguel do Carmo morreu com 47 anos, quando Geraldo, pai de
Raquel, tinha apenas 5.
– Eu me sentia culpada de não participar
da busca dessa identidade. O negro faz parte da história do nosso país e
a nossa família faz parte da história de Campinas. Não conheci meu avô,
mas é apenas duas gerações acima da minha. A raiz está muito perto
ainda! – afirma ela.
Geraldo (pai de Raquel e avô de Gabriel e
Lucas) é o único dos filhos de Miguel que jogaram futebol
profissionalmente e que está vivo. Tem 84 anos e ainda joga suas
peladas.
– É o remedinho da semana (risos). Recebe e toca (a
bola), coisinha simples, né? Só para suar um pouquinho – brinca, já
recuperado do rompimento dos tendões de aquiles, durante um dos jogos,
há três anos.
Zagueiro, Geraldo ficou marcado pela passagem pelo Guarani, nos anos 50.
–
Eu havia acertado, em uma sexta-feira, com o Moyses Lucarelli (então
homem forte do clube) para jogar pela Ponte Preta. Mas, no dia seguinte,
o Guarani apareceu na minha casa e me levou para São Paulo. No domingo,
entrei em campo. Fui contratado para resolver os problemas da defesa do
Guarani. Mas na estreia, perdemos de 10 a 0 – diz, entre risos.
Geraldo,
Raquel, Gabriel e Lucas são parte importante da história do negro no
futebol brasileiro, que começou com Miguel do Carmo, em 1900, e abriu
caminho para Pelé, o maior de todos, e para Neymar, a mais recente
revelação negra do país. É essa memória que a família do Carmo tenta
resgatar no Brasil.
QUEM É
Miguel do Carmo
Apontado como o primeiro negro da história do futebol brasileiro
1885:
ano de nascimento
Miguel nasceu em 10 de abril, em Campinas. Três anos antes da abolição da escravatura no Brasil, com a Lei Áurea.
1900:
fundação da Ponte
Na
época, com 15 anos, ele foi um dos fundadores do clube, com outros
garotos e rapazes do Bairro da Ponte Preta, e com o apoio do alemão
Theodor Kutter, do austríaco Nicolau Burghi, do brasileiro descendente
de alemães Hermenegildo Wadt e do brasileiro João Vieira da Silva.
1932:
ano da morte
Morreu com 47 anos, depois de passar por uma cirurgia no estômago.
84 anos
Tem
Geraldo do Carmo, um dos filhos de Miguel do Carmo que também foi
jogador (o outro, Miguel, morreu. Zagueiro, atuou no Guarani, na década
de 50).
18 anos
Tem
o bisneto Gabriel do Carmo Medes. Ele tenta seguir a carreira no
futebol. Joga como lateral. Nasceu em 12/3/1993, em Campinas. Tem 1,72
metro e 70 quilos.
17 anos
Tem o bisneto
Lucas do Carmo Santos. Também tenta seguir a carreira. Joga como
volante. Nasceu em 10/8/1993, em Campinas. Tem 1,78 metro e 73 quilos.
Semana teve polêmicas com suposto racismo
Durante
o amistoso da Seleção contra a Escócia, em Londres, no dia 27 de março,
uma casca de banana foi atirada por um adolescente alemão perto de
Neymar. A polícia identificou o garoto, disse não ter havido intenção
racista, mas não explicou por que a casca foi atirada. No dia seguinte,
durante o programa “CQC”, da TV Bandeirantes, o deputado federal Jair
Bolsonaro (PP) disse: “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem
quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem
educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o teu”, à
cantora Preta Gil, que perguntou o que ele faria se seu filho namorasse
uma negra. Após repercussão negativa, Bolsonaro disse que não havia
entendido a pergunta.
DOSSIÊ
Ponte já enviou dossiê à FIFA
Desde
2003, a Ponte Preta tenta ser reconhecida pela Fifa como o primeiro
clube a aceitar e ter jogadores negros em seu time. Mas o trabalho de
pesquisa e documentação sobre a história do futebol em Campinas, que
começou em 1996, é do historiador e pesquisador da Ponte, José Moraes
dos Santos Neto – na época, ele ocupava cargo na Unicamp.
Em um
dos trechos do dossiê enviado à Fifa, Santos Neto cita o time formado no
Bairro da Ponte Preta, em Campinas. Leia trecho abaixo:
“(...)
Os meninos e rapazes jogadores de futebol eram brancos, negros e
mulatos. Entre os jovens tínhamos quatro negros e dois mulatos, mas um
deles se tornou jogador do primeiro time da Ponte Preta após sua
fundação em 1900, seu nome era Miguel do Carmo. Em 1900 esses rapazes
resolveram fundar um time de futebol, para tanto contaram com o apoio do
alemão Theodor Kutter, do austríaco Nicolau Burghi, do brasileiro
descendente de alemães Hermenegildo Wadt e do brasileiro Capitão João
Vieira da Silva. O objetivo era fundar uma associação sem preconceito de
raça ou religião para praticar o futebol . Em 11 de agosto de 1900 é
fundada a Associação Atlética Ponte Preta (...)”.
A entidade
respondeu com carta assinada pelo então chefe de relações públicas
Federico Addiechi, mas reconhecendo a Ponte Preta apenas como “um
exemplo de igualdade, fraternidade e não-discriminação, através de seu
time de futebol por mais de um século”.
Miguel do Carmo tinha 15
anos na época. Jogou pela Ponte Preta e morreu jovem, aos 33 anos,
depois de passar por uma cirurgia no estômago.
PIONEIRISMO
Ponte ou Vasco?
Um
debate antigo que acirra a discussão sobre o tema é: qual clube aceitou
o primeiro negro no Brasil, Ponte ou Vasco? O Club de Regatas Vasco da
Gama foi fundado em 21 de agosto de 1898, por um grupo de 62 rapazes na
maioria imigrantes portugueses, com o intuito de ser uma associação
dedicada à pratica do remo, principal esporte do Rio de Janeiro, na
época, a capital do país.
O Vasco só incorporou ao
clube um time de futebol em 26 de novembro de 1915, quinze anos após a
fundação da Ponte Preta, que não faz distinção de raça desde sua
fundação, em 1900. A razão disso? Era possível notar a presença de
negros e mulatos entre seus fundadores. O jogador Miguel do Carmo, por
exemplo, foi titular do time ainda no primeiro ano do clube. Embora o
Vasco, em 1904, tenha elegido um presidente negro, não há dúvidas, de
que a Ponte Preta é pioneira na democracia racial do futebol brasileiro,
por pelo menos quatro anos. E isso não é papo de torcedor, é
matemática.
Se os números deixam dúvidas, qual a razão da existência do debate?
1) O
livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mário filho, a principal
fonte de consulta sobre a história dos jogadores negros no Brasil,
embora precioso como acervo de informações, abrange apenas os clubes do
Rio de Janeiro, e entre esses clubes, realmente, o Vasco se destaca na
questão da aceitação do negro;
2) durante toda a sua
história o Vasco sofreu preconceitos e foi penalizado por ter negros no
seu elenco. Episódios que mancharam o esporte, e de tão marcantes vão
ser sempre lembrados como marcos da história do futebol brasileiro.
Não
se discute a importância e o valor da luta do Vasco, mas a Ponte também
foi atuante na luta contra o preconceito. Assumiu a cor preta no nome e
no uniforme. Levantou uma bandeira. Pediu liberdade a uma cidade
conservadora, nada menos que o último município brasileiro a abolir a
escravatura.
A partir de meados da década de 10, a Ponte passou a
ser denominada a Veterana, porque, entre os muitos clubes que surgiram
na virada do novo século em Campinas, foi o único que sobreviveu e, até
por isso, acabou sendo o mais antigo. Não é à toa, e nem demérito
vascaíno, mas é inegável, que o primeiro jogador negro do futebol
brasileiro nasceu nos colos da centenária Preta Velha!
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