Campinas (SP)
Os primeiros negros no futebol brasileiro |
No limite da idade para entrar na carreira profissional, a dupla treina nos campos do Jardim Garcia (em escolinha que leva o nome do avô, Geraldo do Carmo, filho de Miguel e zagueiro do Guarani, nos anos 50) e do Taquaral, bairros de Campinas. Gabriel e Lucas até tentaram participar de peneira da Ponte, mas com a concorrência de outros 3 mil meninos nem chegaram a ir a campo.
– Uma porta de entrada pode ser o futebol universitário dos EUA. Minha ideia é estudar lá e tentar. Nos EUA é comum a carreira começar com 18 – diz o volante Lucas.
Sua mãe, a jornalista Raquel do Carmo, acompanha a luta do filho e do sobrinho, enquanto busca resgatar a memória do avô, que ela nem chegou a conhecer – Miguel do Carmo morreu com 47 anos, quando Geraldo, pai de Raquel, tinha apenas 5.
– Eu me sentia culpada de não participar da busca dessa identidade. O negro faz parte da história do nosso país e a nossa família faz parte da história de Campinas. Não conheci meu avô, mas é apenas duas gerações acima da minha. A raiz está muito perto ainda! – afirma ela.
Geraldo (pai de Raquel e avô de Gabriel e Lucas) é o único dos filhos de Miguel que jogaram futebol profissionalmente e que está vivo. Tem 84 anos e ainda joga suas peladas.
– É o remedinho da semana (risos). Recebe e toca (a bola), coisinha simples, né? Só para suar um pouquinho – brinca, já recuperado do rompimento dos tendões de aquiles, durante um dos jogos, há três anos.
Zagueiro, Geraldo ficou marcado pela passagem pelo Guarani, nos anos 50.
– Eu havia acertado, em uma sexta-feira, com o Moyses Lucarelli (então homem forte do clube) para jogar pela Ponte Preta. Mas, no dia seguinte, o Guarani apareceu na minha casa e me levou para São Paulo. No domingo, entrei em campo. Fui contratado para resolver os problemas da defesa do Guarani. Mas na estreia, perdemos de 10 a 0 – diz, entre risos.
Geraldo, Raquel, Gabriel e Lucas são parte importante da história do negro no futebol brasileiro, que começou com Miguel do Carmo, em 1900, e abriu caminho para Pelé, o maior de todos, e para Neymar, a mais recente revelação negra do país. É essa memória que a família do Carmo tenta resgatar no Brasil.
QUEM É
Miguel do Carmo
Apontado como o primeiro negro da história do futebol brasileiro
1885: ano de nascimento
Miguel nasceu em 10 de abril, em Campinas. Três anos antes da abolição da escravatura no Brasil, com a Lei Áurea.
1900: fundação da Ponte
Na época, com 15 anos, ele foi um dos fundadores do clube, com outros garotos e rapazes do Bairro da Ponte Preta, e com o apoio do alemão Theodor Kutter, do austríaco Nicolau Burghi, do brasileiro descendente de alemães Hermenegildo Wadt e do brasileiro João Vieira da Silva.
1932: ano da morte
Morreu com 47 anos, depois de passar por uma cirurgia no estômago.
84 anos
Tem Geraldo do Carmo, um dos filhos de Miguel do Carmo que também foi jogador (o outro, Miguel, morreu. Zagueiro, atuou no Guarani, na década de 50).
18 anos
Tem o bisneto Gabriel do Carmo Medes. Ele tenta seguir a carreira no futebol. Joga como lateral. Nasceu em 12/3/1993, em Campinas. Tem 1,72 metro e 70 quilos.
17 anos
Tem o bisneto Lucas do Carmo Santos. Também tenta seguir a carreira. Joga como volante. Nasceu em 10/8/1993, em Campinas. Tem 1,78 metro e 73 quilos.
Semana teve polêmicas com suposto racismo
Durante o amistoso da Seleção contra a Escócia, em Londres, no dia 27 de março, uma casca de banana foi atirada por um adolescente alemão perto de Neymar. A polícia identificou o garoto, disse não ter havido intenção racista, mas não explicou por que a casca foi atirada. No dia seguinte, durante o programa “CQC”, da TV Bandeirantes, o deputado federal Jair Bolsonaro (PP) disse: “Preta, não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o teu”, à cantora Preta Gil, que perguntou o que ele faria se seu filho namorasse uma negra. Após repercussão negativa, Bolsonaro disse que não havia entendido a pergunta.
DOSSIÊ
Ponte já enviou dossiê à FIFA
Desde 2003, a Ponte Preta tenta ser reconhecida pela Fifa como o primeiro clube a aceitar e ter jogadores negros em seu time. Mas o trabalho de pesquisa e documentação sobre a história do futebol em Campinas, que começou em 1996, é do historiador e pesquisador da Ponte, José Moraes dos Santos Neto – na época, ele ocupava cargo na Unicamp.
Em um dos trechos do dossiê enviado à Fifa, Santos Neto cita o time formado no Bairro da Ponte Preta, em Campinas. Leia trecho abaixo:
“(...) Os meninos e rapazes jogadores de futebol eram brancos, negros e mulatos. Entre os jovens tínhamos quatro negros e dois mulatos, mas um deles se tornou jogador do primeiro time da Ponte Preta após sua fundação em 1900, seu nome era Miguel do Carmo. Em 1900 esses rapazes resolveram fundar um time de futebol, para tanto contaram com o apoio do alemão Theodor Kutter, do austríaco Nicolau Burghi, do brasileiro descendente de alemães Hermenegildo Wadt e do brasileiro Capitão João Vieira da Silva. O objetivo era fundar uma associação sem preconceito de raça ou religião para praticar o futebol . Em 11 de agosto de 1900 é fundada a Associação Atlética Ponte Preta (...)”.
A entidade respondeu com carta assinada pelo então chefe de relações públicas Federico Addiechi, mas reconhecendo a Ponte Preta apenas como “um exemplo de igualdade, fraternidade e não-discriminação, através de seu time de futebol por mais de um século”.
Miguel do Carmo tinha 15 anos na época. Jogou pela Ponte Preta e morreu jovem, aos 33 anos, depois de passar por uma cirurgia no estômago.
PIONEIRISMO
Ponte ou Vasco?
Um debate antigo que acirra a discussão sobre o tema é: qual clube aceitou o primeiro negro no Brasil, Ponte ou Vasco? O Club de Regatas Vasco da Gama foi fundado em 21 de agosto de 1898, por um grupo de 62 rapazes na maioria imigrantes portugueses, com o intuito de ser uma associação dedicada à pratica do remo, principal esporte do Rio de Janeiro, na época, a capital do país.
O Vasco só incorporou ao clube um time de futebol em 26 de novembro de 1915, quinze anos após a fundação da Ponte Preta, que não faz distinção de raça desde sua fundação, em 1900. A razão disso? Era possível notar a presença de negros e mulatos entre seus fundadores. O jogador Miguel do Carmo, por exemplo, foi titular do time ainda no primeiro ano do clube. Embora o Vasco, em 1904, tenha elegido um presidente negro, não há dúvidas, de que a Ponte Preta é pioneira na democracia racial do futebol brasileiro, por pelo menos quatro anos. E isso não é papo de torcedor, é matemática.
Se os números deixam dúvidas, qual a razão da existência do debate?
1) O livro “O negro no futebol brasileiro”, de Mário filho, a principal fonte de consulta sobre a história dos jogadores negros no Brasil, embora precioso como acervo de informações, abrange apenas os clubes do Rio de Janeiro, e entre esses clubes, realmente, o Vasco se destaca na questão da aceitação do negro;
2) durante toda a sua história o Vasco sofreu preconceitos e foi penalizado por ter negros no seu elenco. Episódios que mancharam o esporte, e de tão marcantes vão ser sempre lembrados como marcos da história do futebol brasileiro.
Não se discute a importância e o valor da luta do Vasco, mas a Ponte também foi atuante na luta contra o preconceito. Assumiu a cor preta no nome e no uniforme. Levantou uma bandeira. Pediu liberdade a uma cidade conservadora, nada menos que o último município brasileiro a abolir a escravatura.
A partir de meados da década de 10, a Ponte passou a ser denominada a Veterana, porque, entre os muitos clubes que surgiram na virada do novo século em Campinas, foi o único que sobreviveu e, até por isso, acabou sendo o mais antigo. Não é à toa, e nem demérito vascaíno, mas é inegável, que o primeiro jogador negro do futebol brasileiro nasceu nos colos da centenária Preta Velha!
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